Upgrade de marca: os cases Havaianas e Colcci
André Cauduro D?Angelo explica três medidas que conferiram vida nova a duas marcas brasileiras
Por Redação - 03/04/2008 Artigos
<p class="titulomateria">Upgrade de marca: os cases Havaianas e Colcci</p> <p>Por Andr&eacute; Cauduro D&rsquo;Angelo*</p> <p>Guinadas no posicionamento de marcas costumam ser tarefas dif&iacute;ceis, pois sempre envolvem, em algum n&iacute;vel, a nega&ccedil;&atilde;o do posicionamento anterior. Reposicionar radicalmente demanda convencer o consumidor de que tudo o que se dizia sobre determinado produto ou marca, at&eacute; aquele momento, n&atilde;o vale mais.</p> <p>Especialmente dif&iacute;ceis s&atilde;o os reposicionamentos que envolvem upgrades de marcas, atrav&eacute;s da eleva&ccedil;&atilde;o de pre&ccedil;os e da promo&ccedil;&atilde;o de uma imagem mais sofisticada. &Agrave; populariza&ccedil;&atilde;o todos est&atilde;o acostumados, visto que esta parece a ordem &ldquo;natural&rdquo; do mercado: o que nasce elitista acaba popular. Mas o contr&aacute;rio demanda quebrar preconceitos e desconfian&ccedil;as; marcas reconhecidas por um determinado padr&atilde;o de qualidade devem ser capazes de provar que se tornaram melhores a ponto de justificar pre&ccedil;os mais altos.</p> <p>A tarefa ganha contornos ainda mais desafiadores quando o upgrade envolve transformar em mercadorias simb&oacute;licas marcas historicamente vendidas com base em&nbsp; apelos funcionais. Onde o consumidor antes s&oacute; via um objeto, &eacute; necess&aacute;rio que passe a ver um s&iacute;mbolo, seja l&aacute; do que for: de status, de personalidade, de refinamento, de transgress&atilde;o &agrave;s regras. Ao benef&iacute;cio utilit&aacute;rio, deve-se somar aquele de ordem subjetiva. A despeito dessas dificuldades todas, o Brasil teve, nos &uacute;ltimos anos, dois casos bem-sucedidos de reposicionamento desse tipo: Havaianas e Colcci.</p> <p>O case das Havaianas &eacute; um dos maiores, sen&atilde;o o maior, case de marketing do Brasil &ndash; t&iacute;tulo hipot&eacute;tico que lhe seria conferido com toda justi&ccedil;a, uma vez que ultrapassou as fronteiras acad&ecirc;micas e se tornou de dom&iacute;nio p&uacute;blico. O case Colcci, mais recente, tamb&eacute;m &eacute; digno de nota, visto que se refere a uma reengenharia de marca que colocou uma confec&ccedil;&atilde;o de pouca express&atilde;o no panorama da moda brasileira.</p> <p>Ambos apresentam algumas similaridades que, creio, podem ajudar a explicar o seu sucesso &ndash; e, conseq&uuml;entemente, servir de guia para gestores envolvidos em desafios parecidos. Havaianas e Colcci seguiram roteiro semelhante para reposicionar suas marcas:</p> <p>1. Romperam de maneira bastante clara com o posicionamento anterior, predominantemente funcional;<br />2. Buscaram fontes de legitima&ccedil;&atilde;o externas para o novo posicionamento, de car&aacute;ter mais simb&oacute;lico; e <br />3. Aproveitaram-se do contexto cultural para propor o novo posicionamento.</p> <p>Examinemos um a um os casos e as respectivas medidas tomadas.</p> <p>Mais do que um produto popular, as Havaianas eram conhecidas como uma sand&aacute;lia usada por pobres &ndash; o que, para a imagem de uma marca, tende a ser mais um estigma do que uma vantagem. Vendida em balaios, fazia parte da cesta b&aacute;sica calculada pelo DIEESE em alguns estados do Nordeste. Seu pre&ccedil;o e suas margens de lucro estavam espremidos pela concorr&ecirc;ncia, o que a transformava, praticamente, em uma commodity. Para a S&atilde;o Paulo Alpargatas, sua fabricante, apresentava a vantagem de ser um produto de fabrica&ccedil;&atilde;o f&aacute;cil e barata; para os consumidores, era reconhecido como um produto confort&aacute;vel e dur&aacute;vel. Havia, portanto, virtudes suficientes para mant&ecirc;-lo no mercado, sob o ponto de vista do consumidor, e atrativos econ&ocirc;micos ineg&aacute;veis, sob a &oacute;tica da empresa. Mas a Alpargatas estava num brete: era imposs&iacute;vel cobrar mais caro pelas Havaianas, que tinha nos consumidores de baixa renda seus compradores fi&eacute;is, e extremamente dif&iacute;cil aumentar suas vendas tentando atrair um target de poder aquisitivo mais elevado, que desprezava a marca.</p> <p>Essa &uacute;ltima alternativa s&oacute; seria vi&aacute;vel se esse p&uacute;blico-alvo passasse a enxergar as Havaianas com outros olhos &ndash; n&atilde;o mais os do preconceito, mas sim os da simpatia. E, para que isso ocorresse, a sa&iacute;da seria transformar a imagem da marca, tornando-a refer&ecirc;ncia n&atilde;o da funcionalidade que tanto agradava &agrave; baixa renda, mas sim do despojamento e da simplicidade ideais para qualquer ocasi&atilde;o &ndash; de uma saud&aacute;vel e bem-vinda informalidade, em suma.</p> <p>Para isso, seria fundamental romper com o passado das Havaianas, cortando os la&ccedil;os que uniam a marca ao target que a consagrou. Esse rompimento foi feito atrav&eacute;s de mudan&ccedil;as no produto, na distribui&ccedil;&atilde;o e no pre&ccedil;o.</p> <p>No produto, foi lan&ccedil;ada uma linha especial de Havaianas, comercializada em paralelo com a tradicional. Nessa nova linha, o produto recebia altera&ccedil;&otilde;es superficiais, suficientes para diferenci&aacute;-lo das Havaianas tradicionais sem, contudo, tornar a fabrica&ccedil;&atilde;o menos simples e barata. As sand&aacute;lias eram monocrom&aacute;ticas (enquanto as tradicionais caracterizavam-se pelas duas cores) e receberam um nome levemente diferente do original: &ldquo;Havaianas Top&rdquo;. Al&eacute;m disso, enquanto as Havaianas tradicionais eram vendidas em balaios, as Top ganhavam embalagens e displays especiais para os pontos-de-venda.</p> <p>A distribui&ccedil;&atilde;o tamb&eacute;m contribuiu para cortar os la&ccedil;os hist&oacute;ricos que associavam Havaianas ao segmento de baixa renda: as Top n&atilde;o eram vendidas nos mesmos pontos-de-venda que as tradicionais. Foram colocadas em lojas mais selecionadas, e s&oacute; alguns anos depois &eacute; que ganharam distribui&ccedil;&atilde;o t&atilde;o massificada quanto &agrave; da sand&aacute;lia original.</p> <p>O pre&ccedil;o passou a refletir a mudan&ccedil;a de status pretendida para a marca. As Top custavam cerca de tr&ecirc;s vezes mais que as Havaianas comuns. Eram caras demais para o consumidor de baixa renda, mas perfeitamente acess&iacute;veis para a classe m&eacute;dia.</p> <p>N&atilde;o bastava, contudo, romper com o passado, subitamente dizer-se diferente.&nbsp; Era necess&aacute;rio que esse rompimento fosse avalizado por pessoas influentes. Produtos funcionais s&atilde;o comprados pelos benef&iacute;cios pr&aacute;ticos que oferecem (&ldquo;n&atilde;o deformam, n&atilde;o soltam as tiras e n&atilde;o t&ecirc;m cheiro&rdquo;), mas mercadorias de car&aacute;ter simb&oacute;lico s&atilde;o compradas somente se referendadas pelo contexto social. Aqui desponta a import&acirc;ncia das celebridades, pontas-de-lan&ccedil;a da campanha publicit&aacute;ria das Havaianas Top.</p> <p>O papel das celebridades foi decisivo. A Alpargatas precisava convencer o consumidor de classe m&eacute;dia de que ele poderia usar as Top sem constrangimento, pois se tratava, de fato, de um produto diferente daquele historicamente estigmatizado. Para tanto, n&atilde;o seria suficiente promover mudan&ccedil;as no produto, no pre&ccedil;o e na distribui&ccedil;&atilde;o; era necess&aacute;rio que formadores de opini&atilde;o atestassem a mudan&ccedil;a e conferissem a ela a legitimidade necess&aacute;ria para penetrar no novo target. Foi o que fizeram Malu Mader, Maur&iacute;cio Mattar e tantos outros: &ldquo;autorizaram&rdquo; a classe m&eacute;dia a comprar as novas Havaianas, tornando-se fiadores p&uacute;blicos da mudan&ccedil;a de posicionamento da marca.</p> <p>Os famosos escolhidos eram bonitos e bem sucedidos, sa&iacute;dos da t&iacute;pica classe m&eacute;dia urbana que a Alpargatas queria atingir &ndash; ou seja, celebridades com as quais o target se identificava. Bem diferentes de Chico Anysio, hist&oacute;rico garoto-propaganda da marca. Embora sua trajet&oacute;ria profissional e pessoal fosse amplamente reconhecida e respeitada, Chico era o prot&oacute;tipo do pobre vencedor: um migrante nordestino que havia feito sucesso no centro do pa&iacute;s gra&ccedil;as a esfor&ccedil;o e talento. Gerava identifica&ccedil;&atilde;o imediata com pedreiros e dom&eacute;sticas que, como ele, trabalhavam de sol a sol longe de seus estados de origem, mas nenhuma empatia com o novo target.</p> <p>Por fim: os esfor&ccedil;os da Alpargatas n&atilde;o teriam sido t&atilde;o bem-sucedidos se a marca estivesse na contram&atilde;o dos tempos. N&atilde;o foi o caso. O lan&ccedil;amento das Havaianas Top coincidiu com a ascens&atilde;o de comportamentos mais informais que se refletiram nas regras do vestir. Fronteiras entre despojamento e sofistica&ccedil;&atilde;o tornaram-se menos claras, e a despretens&atilde;o das sand&aacute;lias de borracha encaixou-se bem nesse cen&aacute;rio em que ser chique era ser descolado.</p> <p>O case Havaianas &eacute; primoroso justamente por ter conferido vida nova &agrave; marca sem, contudo, demandar mudan&ccedil;as profundas no produto &ndash; apenas em sua imagem. Produto, pre&ccedil;o e distribui&ccedil;&atilde;o desempenharam importante papel em romper com o passado das Havaianas, mas a maior parte do m&eacute;rito pelos resultados alcan&ccedil;ados est&aacute; na campanha publicit&aacute;ria.</p> <p>O efeito da propaganda sobre a marca foi tamanho que o case se tornou amplamente conhecido como um cl&aacute;ssico exemplo de reposicionamento – quando, na verdade, tratou-se de um bem-sucedido lan&ccedil;amento de novo produto. Afinal, as &ldquo;velhas&rdquo; Havaianas continuaram sendo comercializadas, ao mesmo tempo em que era introduzida a vers&atilde;o Top. A Top constitu&iacute;a um novo produto, vinculado &agrave; marca-m&atilde;e Havaianas, por&eacute;m com posicionamento diferente. No entanto, as diferen&ccedil;as das sand&aacute;lias Top eram t&atilde;o superficiais que foi imposs&iacute;vel n&atilde;o encar&aacute;-las como uma evolu&ccedil;&atilde;o das originais &ndash; e, por conseq&uuml;&ecirc;ncia, tratar os esfor&ccedil;os da Alpargatas como uma tentativa de reposicionar as Havaianas. O produto era praticamente o mesmo; tentava-se, somente, alterar a percep&ccedil;&atilde;o do consumidor a seu respeito.</p> <p><img class="foto_laranja_materias" style="float: left;" title="Upgrade de marca: os cases Havaianas e Colcci" src="images/materias/colcci_gisele.jpg" border="0" alt="" width="300" height="658" />O caso da Colcci j&aacute; &eacute; um pouco diferente. At&eacute; meados dos anos 90, a Colcci era uma rede de lojas de roupas b&aacute;sicas e acess&iacute;veis para adolescentes. As pe&ccedil;as n&atilde;o tinham grandes diferenciais em termos de design ou qualidade. Brigas entre os s&oacute;cios e m&aacute; administra&ccedil;&atilde;o levaram ao fechamento das lojas por alguns anos e ao desaparecimento da marca no cen&aacute;rio das confec&ccedil;&otilde;es brasileiras.</p> <p>Na hora de voltar ao mercado, para romper com o passado, a Colcci desistiu do neg&oacute;cio &ldquo;b&aacute;sico e barato&rdquo; e surfou o apelo fashion: contratou novos estilistas e passou a ter produtos esteticamente mais ousados. Para marcar posi&ccedil;&atilde;o como grife de moda, e n&atilde;o de roupas, passou a fazer parte da S&atilde;o Paulo Fashion Week. Suas lojas foram remodeladas; design e layout come&ccedil;aram a se parecer mais com o de lojas tradicionalmente fashion, como Forum, Ellus e Zoomp.</p> <p>Mas isso talvez n&atilde;o fosse o suficiente. Moda &eacute; um efeito manada que s&oacute; se concretiza se nascer bem aceito junto a formadores de opini&atilde;o. E a bola da vez em termos de prest&iacute;gio e visibilidade era &ndash; e &eacute; &ndash; Gisele B&uuml;ndchen. Gisele conferiu n&atilde;o s&oacute; a legitimidade que a Colcci precisava para penetrar no mundinho fashion, como tamb&eacute;m atraiu os olhares para uma marca h&aacute; tempos fora do mercado e que precisava ser relembrada.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; <br />&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp; <br />O surgimento de um interesse maior dos brasileiros por moda, expresso em desfiles, revistas e programas de TV, constituiu o pano de fundo ideal no qual as a&ccedil;&otilde;es da Colcci tomaram forma.&nbsp;</p> <p>De novo: &eacute; discut&iacute;vel se o case Colcci &eacute; mesmo de reposicionamento ou de um mero relan&ccedil;amento de marca. Mas como permanecia, entre os consumidores, a imagem da Colcci de anos antes, tornou-se inevit&aacute;vel enxergar seu retorno ao mercado como uma mudan&ccedil;a de rumo, apesar do longo espa&ccedil;o de tempo a separar os dois momentos da marca.</p> <p>Ainda que os cases Havaianas e Colcci pare&ccedil;am de interesse exclusivo do Marketing, suas caracter&iacute;sticas permitem que sejam examinados &agrave; luz de outras disciplinas. Jean Baudrillard, fil&oacute;sofo franc&ecirc;s morto no ano passado, dizia que a sociedade de consumo &eacute; a &ldquo;sociedade do signo&rdquo;; uma sociedade na qual n&atilde;o se consomem mercadorias de valor utilit&aacute;rio, e sim aquilo que elas representam: liberdade, sensualidade, poder econ&ocirc;mico. Dif&iacute;cil n&atilde;o enxergar o case Havaianas como perfeito para ilustrar as id&eacute;ias de Baudrillard. Mudan&ccedil;as simb&oacute;licas foram capazes de transformar a percep&ccedil;&atilde;o de todo um segmento social sobre o mesm&iacute;ssimo produto: um solado de borracha com duas tiras. Um exemplo cl&aacute;ssico de como a principal moeda transacionada no mundo do consumo &eacute; o significado.</p> <p>J&aacute; o case da Colcci &eacute; menos prop&iacute;cio para esse tipo de an&aacute;lise, j&aacute; que, ao menos, envolveu mudan&ccedil;as substanciais no produto. Mesmo assim, tamb&eacute;m serve de depoimento vivo sobre a import&acirc;ncia da imagem nos tempos atuais: Gisele B&uuml;ndchen funcionou como uma garantia p&uacute;blica da transforma&ccedil;&atilde;o pela qual a marca passou. Certamente Baudrillard &ndash; ou Guy Debord, d&eacute;cadas antes – teria muito o que dizer sobre o papel de pessoas p&uacute;blicas como ela na &ldquo;sociedade do espet&aacute;culo&rdquo;.</p> <p>Em comum entre os dois, o fato de terem promovido um tipo de reposicionamento incomum e dif&iacute;cil, o de upgrade de marcas. A despeito das diferen&ccedil;as de trajet&oacute;ria e de mercados de atua&ccedil;&atilde;o, Havaianas e Colcci ensinaram que reposicionamentos desse tipo demandam, primeiro, romper com o passado, para apagar os vest&iacute;gios da velha imagem na mente dos consumidores.</p> <p>Depois, legitimar o novo posicionamento perante o target, tarefa na qual o aux&iacute;lio das celebridades pode ser importante, embora n&atilde;o imprescind&iacute;vel – fundamental, mesmo, &eacute; que exista ader&ecirc;ncia de formadores de opini&atilde;o. E, terceiro, que conv&eacute;m manter sempre uma sintonia com o esp&iacute;rito do tempo, para que todo o processo seja feito no mesmo sentido da correnteza, e n&atilde;o no seu oposto.&nbsp;&nbsp;&nbsp;&nbsp;</p> <p>Andr&eacute; Cauduro D&rsquo;Angelo &eacute; Mestre em Marketing e Administra&ccedil;&atilde;o pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor de &ldquo;Precisar, n&atilde;o Precisa &ndash; um olhar sobre o consumo de luxo no Brasil&rdquo; (ed. Lazuli/Cia. Editora Nacional). Site: <a href="http://www.precisarnaoprecisa.com.br" target="_blank">www.precisarnaoprecisa.com.br</a>. E-mail: <a href="mailto:livro@precisarnaoprecisa.com.br">livro@precisarnaoprecisa.com.br</a>.</p>