De acordo com o comandante Marcus De Grandis, a indústria da aviação é hierárquica, altamente regulamentada, com requisitos rígidos e com procedimentos bem definidos. Contudo, na hora que a porta do avião fecha, o time precisa resolver as dificuldades que eventualmente apareçam com autonomia e agilidade. A forma de trabalho da tripulação é um grande exemplo de trabalho em redes que interdependem. Mesmo sem saber, o sucesso do time depende das três leis sistêmicas: pertencimento, equilíbrio e ordem.
Uma empresa aérea pode realizar em um dia mais de mil voos, cada um deles tem um objetivo, a princípio simples, que é transportar pessoas e/ou cargas de A para B, com segurança, economia, conforto e menor custo. Cada voo, é realizado por uma tripulação composta por pessoas, que na maioria das vezes, nunca trabalharam juntas, e que as vezes nem sequer se conhecem. Mas mesmo sendo a primeira vez que trabalham juntas, devem ser capazes de atingir o objetivo proposto com a mínima interferência da organização.
Cada tripulação é, e deve ser, um time autônomo de alta performance (TAAP), que faz parte de uma rede, e este (s) time(s) são capazes de perceber, considerar e avaliar em conjunto um diversas variáveis, construir e executar um plano para atingir o objetivo proposto, dentro de um contexto no qual as variáveis mudam a todo instante, o ambiente é complexo e não controlado e em um espaço muito curto de tempo.
Abaixo um relato do Comandante Marcus De Grandis sobre o dia que a tripulação foi posta a prova num cenário de guerra:
“Voei como comandante por muitos anos em uma empresa aérea nos Emirados Árabes, voando no Oriente Médio, África, Ásia e Europa. Em um dia de Julho de 2014 fui escalado para comandar o voo de Dubai – Bagram – Kandarhar – Dubai, era um contrato da empresa com o pentágono para transportar os militares americanos para as bases da OTAN – International Security Assistance Force (ISAF) de/para o Afeganistão. A tripulação era composta por membros de diversas nacionalidades, sendo eu o único brasileiro.
Após a escala na base militar de Bagram, decolamos para a base militar de Kandahar, local da maior produção mundial de ópio e com a maior concentração de War Lords e dominada por Talibans. Durante a descida tivemos que evitar a colisão com um drone da força aérea americana que estava em missão e pousamos em Kandahar. Após livrar pista, seguimos o procedimento do aeroporto de seguir uma viatura follow me até o local do estacionamento. Era um dia normal, mas nesse momento e história mudou de rumo e fomos surpreendidos por uma explosão metros a frente da nossa aeronave.
O soldado da viatura follow me, deixou o veículo e deitou-se na pista de taxi, ouvimos uma sirene de emergência. Parei, respirei fundo e esperei alguns segundos para tentar entender o que estava acontecendo e perguntei a copiloto (americana) qual a sua interpretação a respeito, foi a mesma percepção que a minha: a base estáva sob ataque. Imediatamente, comandei “Attention Crew at Stations”, uma comunicação padrão que devemos realizar em caso de alguma situação de urgência/emergência, na qual os comissários interrompem tudo o que estão fazendo, retornam as suas estações e ficam prontas para a evacuação de emergência. A rede estava em alerta e pronta para agir.
Neste momento, a Torre de controle, com voz extremamente carregada de adrenalina, dirigiu se a nós confirmando que a base estava sob ataque e informando que deveríamos manter a posição. Visualizamos a viatura follow me sair em alta velocidade em direção aos bunkers, enquanto soldados, corriam para buscar abrigo. Nossa solicitação de taxi até a posição de estacionamento foi negada e estávamos parados no meio de uma pista de taxi em uma base militar sob ataque, com um avião cheio de passageiros e combustível – um quadro nada tranquilo. Tudo isso aconteceu em menos de 1 minuto.
Nos dirigimos aos passageiros, dizendo que estávamos com um problema, que permanecessem sentados, que seguissem as instruções dos comissários e que voltaríamos com mais informação em breve e com o objetivo de não gerar pânico. Da base começaram a sair soldados prontos para o confronto e decolar helicópteros black hawk para patrulha e contra-ataque.
Continuamos a tentar pensar em alternativas para tentar sair daquela posição em busca de abrigo.
Nos dividimos: coube a copiloto a função de comunicar-se com a Torre uma vez que o controlador também era americano e assim, conseguiria se comunicar melhor e mais rápido diante de toda emoção e tensão que nós e a Torre estávamos enfrentando, a Comissária chefe deveria colher informações a respeito da percepção da situação, do estado da tripulação e passageiros e da aeronave. Como um time com autonomia e mesmo à revelia da Torre de comando, decidimos ir para o pátio próximo aos bunkers. Comunicamos aos passageiros, explicamos o necessário para evitar pânico e seguimos em direção ao abrigo.
Ao chegarmos no pátio solicitei escadas para realizar o desembarque rápido, porém a resposta da torre foi estavam sob ataque e ninguém poderia nos apoiar. Observamos o pátio e vimos um local mais abrigado bem em frente aos bunkers, concordamos que seria um bom lugar para esperarmos e caso necessário evacuaríamos os passageiros e tripulação em frente ao abrigo. Ficamos seguros dentro da aeronave até o ataque acabar e após uma hora ouvimos pelo alto falante da base, “All clear, all clear”… os soldados, começaram a sair dos bunkers, nos trouxeram as escadas e o comandante da base veio até a aeronave.
Para nós não era viável pernoitar em Kandahar e conversamos com o comandante da base. Precisava de mais combustível para ir até Dubai e que precisava realizar um turn around muito rápido devido limitações de horário em Dubai. Tínhamos de sair de Kandahar antes do anoitecer e se não obtivéssemos mais combustível, decolaríamos para Karachi no Paquistão. Nossa empresa e a base concordaram com o plano apresentado por nós, recebemos o combustível e decolamos.
Quando tudo parecia mais tranquilo, nós começamos a errar tarefas rotineiras que fazíamos diariamente pois a fadiga estava mostrando as suas garras. Como um TAAP, compartilhamos nossas fraquezas abertamente (a fadiga e a preocupação de sermos abatidos pelos Talibãs após a decolagem) e combinamos fazer tudo bem devagar, checando os itens críticos várias vezes. Assim prosseguimos, tudo feito em slow motion gerenciando a fadiga própria e ficando atendo aos colegas, double checking todos os itens críticos para a decolagem.
Ao entrarmos no espaço aéreo dos Emirados Árabes, fomos informados que deveríamos esperar em órbita a abertura da pista. Estávamos exaustos e qualquer espera era muito penosa e ainda risco de algum erro básico, porém fatal, acontecer. Após 10 minutos de espera, fomos autorizados a iniciar a aproximação porém na curta final para pouso fomos instruídos pela torre a arremeter. Fizemos os procedimentos com muito cuidado, muito de vagar e checando e rechecando cada passo a ser executado, pois não são raros os incidentes ou acidentes em arremetidas mal executadas.
Após o checklist, a copiloto comunicou para o controle de aproximação de Dubai que tínhamos mais 5 minutos antes de prosseguirmos para a alternativa. Pousamos extremamente cansados, neste momento o corpo e a mente já querem relaxar, mas ainda tínhamos que taxiar a aeronave para o pátio, e cortar os motores. Portanto, ainda assim fomos um dando energia e apoiando o outro para garantir que tudo ocorresse em segurança até o último passageiro desembarcar da aeronave, afinal, vários incidentes e alguns acidentes foram causados durante a fase de taxi, a qual é considerada uma fase crítica do voo, apesar de estarmos muito familiarizados com o aeroporto”.
Segundo o comandante Marcus De Grandis, 4 coisas são fundamentais para a performance do time autônomos de alta performance (TAAP) em ambientes imprevisíveis de alto risco:
1 – Clareza nos objetivos primários (transportar com segurança – inegociável) e secundários (todos têm pleno conhecimento das responsabilidades e do que é esperado deles), de forma que cada indivíduo participante da rede seja capaz de fazer parte de um time que tem performance muito melhor em equipe do que individualmente.
2 – Contratação e desenvolvimento de competências técnicas (conhecimento sobre o tema e as tarefas e os procedimentos), e principalmente das habilidades comportamentais não técnicas (como comunicação, assertividade, resolução de conflitos, trabalho em equipe, liderança, processo decisório, entre outros).
3 – Cultura Colaborativa, sem culpabilidade e aprendizado com os erros, constante feedback, readequação dos processos e/ou procedimentos: esses fatores geram clima de reciprocidade e confiança mútuas, tendo pouca interferência no trabalho do time autônomo de altíssima performance (TAAP), além de fazer com que o tripulante se sinta parte do sistema e responsável direto pelo resultado.
4 – Autonomia a flexibilidade para decidir num momento de baixa certeza e alta pressão. Clareza nos objetivos, pessoas com competências técnicas e comportamentais e cultura colaborativa criam as precondições para o time ter autonomia e flexibilidade no momento crítico.
E o seu time, está preparado para tomar decisões em momentos de incerteza e alta pressão?
* Texto em colaboração com Adriana Queiróz e Marcus De Grandis.
Adriana Queiróz é Mestra em Administração pela FGV, sócia fundadora da Humma Marketing, Marca e Inovação e Diretora Executiva na Become Hub de Inteligência em Inovação e Sustentabilidade.
Marcus De Grandis, sócio fundador da Flieger Training & Consulting, comandante, Engenheiro, Bacharel em Ciências Aéronauticas pela PUC-RS, Pós-graduado em Transporte Aéreo e Aeroportos pelo ITA, Investigador de Acidentes Aeronáuticos pela Força Aérea Brasileira.